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Ahmad Schabib Hany

SEU HERMENEGILDO E A MARCHA DOS ESQUECIDOS

Ter, 07 Março de 2023 | Fonte: Ahmad Schabib Hany


Seu Hermenegildo, sua querida Família e seus Companheiros de jornada, sagrada jornada, fizeram do Coração do Pantanal e da América do Sul celeiro de promissão, de bênçãos e de esperança.

A dignidade de um Ser Humano (letras maiúsculas) se percebe pelas atitudes ao longo de sua Vida. Seu Hermenegildo Pereira, o querido e agora saudoso ‘Seu Hermê’, me foi apresentado pelo querido e saudoso Padre Pasquale Forin em fins da década de 1980. Homem simples, sincero, generoso e, sobretudo, leal à sua luta, que não era individual, mas coletiva, e para ele coletividade incluía a Família. Na época, a Comissão Pastoral da Terra em Corumbá era coordenada pelo casal de Amigos Dionísio e Geralda, que depois se foram para Goiânia.

Seu Hermê foi um verdadeiro Mestre, que a gente só encontra em relatos pulsantes, vívidos, envolventes. Mas eu tive a honra e o privilégio de conhecer pessoalmente. Mais: Esposo da Professora Maria da Silva Pereira, diretora da Escola Monte Azul, construída pela própria comunidade do Assentamento Taquaral. Pai do também Professor Sérgio da Silva Pereira, que não só se qualificou como licenciado em Educação e bacharel em Música, mas também fez o Mestrado em Música na distante Universidade Estadual de Santa Catarina (UESC), integrou o Poetas do Cerrado e a Orquestra do Campo e que teve a felicidade de fazer os Pais ficarem honrados com sua dedicação, talento, coerência e lealdade à causa dos Trabalhadores Rurais, aos paladinos da Reforma Agrária.

Existência de muita adversidade, grandes desafios, lutas incessantes e, em um país em que os que se julgam ‘donos’ dos destinos dos mais humildes como este país-continente cuja história se remete a saques e genocídio dos povos originários e à vil comercialização de seres humanos escravizados e tratados pior que animais. Tanto é verdade, que toda vez em que a Justiça do Trabalho flagra trabalho degradante similar ao de escravo vêm escritórios de advocacia ‘de grife’ dizer que a responsabilidade era da ‘terceirizada’, os que pouco tempo atrás eram chamados de ‘gatos’.

A Jornada de Vida de Seu Hermenegildo e da Professora Maria, antes do nascimento de sua digna Prole (afinal, são proletários) é longeva e dura. Poucos hoje conhecem a saga dos Trabalhadores Rurais que fizeram a longa e perigosa Travessia do Rio dos Pássaros -- nome, aliás, do emblemático livro-reportagem escrito a seis mãos pelos Jornalistas Cácia Maria Cortez, Edson Silva e Luiz Taques no início dos anos 1980 --, quando sobreviveram à investida dos jagunços da Fazenda Santa Idalina, adquirida por uma dessas empresas de ‘Colonização’ na então ‘nova fronteira agrícola’, e o apoio da congregação da Divina Providência foi determinante, literalmente providencial. A CPT de Corumbá, integrada pelas queridas Amigas Ivaneide Minozzo, Amélia Zanella e mais tarde Delari Ebelling e Marilza Vargas e pelos igualmente queridos Amigos Milton Zanotto e Luiz Carlos Vargas, deu fundamental apoio aos agricultores durante as mais de três décadas que atuou no Pantanal.

Um dos maiores exportadores de alimentos do Planeta, o Brasil deu as costas ao lavrador -- aquele que é responsável pela produção, pois sem o seu trabalho, geralmente mal remunerado, a população se desabastece de imediato, além do descontrole inflacionário --, a ele cabe o resgate do histórico papel reservado ao País. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) já demonstrou em números a efetividade da agricultura familiar no contexto da produção agrícola nacional, e por outro lado a constatação da volta do Brasil ao mapa da fome. O curioso é que os mesmos que levaram o país a voltar para o mapa da fome são os que reduziram drasticamente o orçamento público para fazer valer as políticas públicas da Reforma Agrária e da Agricultura Familiar.

E se isso não fosse significativo, o município de Corumbá tem conseguido minimamente manter taxa positiva de crescimento populacional -- como reconhecem até os mais recalcitrantes ufanistas declaradamente contrários à presença de trabalhadores rurais em nosso território --, graças à política de estímulo à agricultura familiar por meio da Reforma Agrária, desde 1984, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciou a implantação dos atuais sete assentamentos rurais existentes, mas desassistidos de políticas públicas fundamentais para a emancipação dos até então projetos de assentamento rural.

Serei mais explícito: graças à população dos sete assentamentos rurais de Corumbá, a taxa positiva de crescimento populacional tem permitido que nosso município estivesse entre os mais populosos do estado. Não é só: ainda que abandonados, a população de assentados rurais contribui para a elevação do PIB local e regional, bem como o repasse considerável do Fundo de Participação do Estado e dos Municípios nas verbas federais e estaduais desse bolo importante. Mas a atrofia cerebral ou miopia republicana de muitos burocratas da região é tamanha, e, como vêm fazendo desde 1984 (ano da implantação do primeiro projeto de assentamento do INCRA no município), os agricultores familiares têm que fazer sua Marcha dos Esquecidos, ainda que de dez em dez anos.

Lembro-me como hoje, há 12 anos, a articulação, que contou com o apoio do Pacto pela Cidadania e da Paróquia de São João Bosco (cujo titular era o Padre Pasquale Forin). Os gestores, sobretudo estaduais, torceram o nariz, mas os agricultores familiares deixaram sua advertência, tanto na Prefeitura de Corumbá como no Ministério Público Federal. Os porta-vozes foram recebidos pelo então Procurador Wilson Prola Junior com a maior atenção e todas as reivindicações foram devidamente consignadas para a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta. Na gestão do saudoso Prefeito Ruiter Cunha de Oliveira, também houve o registro das demandas, além da nomeação de um interlocutor que passou a assessorar o então prefeito petista.

Hoje, mesmo com a dor da recente eternização do querido Senhor Hermenegildo Pereira e outros importantes líderes naturais da coletividade dos agricultores familiares (alguns vítimas da pandemia de covid-19), é realizada a Segunda Marcha dos Esquecidos, neste sábado, dia 4 de março, a partir das 9 horas da manhã, no local da Feira da Nova Corumbá. A rigor, a pauta é a mesma que a de 16 de setembro de 2010, no entanto, com os agravantes do período de desassistência e falta de empatia. Como diz o Professor Sérgio Pereira, o fator motivador são as barreiras sanitárias causadas pela gripe aviária que pode chegar pela fronteira da Bolívia. Mas o pano de fundo é o mesmo que desde as diferentes datas de implantação dos projetos de assentamentos de Corumbá (e Ladário), igualmente indiferente ao drama de brasileiros que teimam trabalhar com honestidade, dignidade e generosidade.

Nesta Segunda Marcha dos Esquecidos, Seu Hermê, Padre Pascoal e tanto(a)s outro(a)s Companheiro(a)s de Jornada e Dignidade estarão em pensamento, em memória, mas as novas gerações de agricultores familiares continuam a fazer história, ou melhor, a fazer da História um instrumento de afirmação, transformação e libertação. Avante, avante, que o raiar de um novo tempo, ainda que tímido, começa a abrir o horizonte.

Correio de Corumbá

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