26 ℃

Roberto Maciel (Betão)

CANTINHO DO BETÃO: CENSO U RADO – Parte 1

Ter, 18 Abril de 2023 | Fonte: Roberto Maciel (Betão)


Ananias “Boca suja”, acordou de uma noite de pesadelos com o Censo anual dos aposentados para a comprovação de vida. Apesar de ter todos os documentos em dia, aquela data fatídica sempre o deixava estressado vários dias antes, já que era desorganizado no guardar de seus papéis: era um documento numa caixa, outro, em outra, tanto que para achar a certidão de casamento, de seus, bisavós até que foi fácil. O negócio foi reunir os cacos mesmo, já carcomidos pelo tempo, pra tirar a Xerox. Os certificados da primeira ejaculação e da primeira polução noturna, assim como a data em que “descascou o sabiá” pela primeira vez, já estavam xerocados e com firma reconhecida em cartório, (aquele ano seria dose cavalar pois o governo iria passar “pente fino” pra contenção de gastos com aposentados. Houve uma época que até defuntos recebiam aposentadoria).   

Ananias “Boca-suja”, lançou o primeiro “pequepê” quando, ao se levantar, atolou o pé esquerdo no penico cheio de mijo ao pé da cama e aproveitou pra mandar a dentadura que lhe sorria no copo d’água na mesinha de cabeceira, tomar naquele lugar em que o proctologista enfia o indicador enluvado e vaselinado num exame de próstata rotineiro. 

Professor aposentado por problemas de saúde, sempre brigando com a inflação, vendo grande parte de seu parco salário de aposentado engolido pelo LEÃO e pela Previdência de aposentados, revezando a compra dos remédios de “veieira”(próstata, pressão, problema respiratório crônico, neuroplastia periférica nos pés e pernas, distrofia dos cones, arritmia e ansiedade), Ananias conseguira chegar aos noventa anos alimentando-se com o que seu restinho de salário dava pra comprar e, com o “bom humor” que lhe era peculiar, levava a vida debulhando seu dicionário de palavrões, o que lhe valera a alcunha de “Boca suja”.    

Agendado para as primeiras horas da manhã, Ananias conferiu, pela última vez, os documentos: identidade, título de eleitor, holerite (desde o primeiro, até o atual), laudos médicos da aposentadoria e até o famoso “teste do trigo” para a comprovação de pregas exigido para ser aceito no serviço militar, estavam todos acondicionados em uma velha mala de papelão, herança de seu avô. Tudo conferido, chamou um táxi e # partiu Censo.
- O Tio vai viajar pra onde, com esse malão?
- Vou pra casa de sua Mãe e Tio é a (plim), pois não tenho nenhum sobrinho viado. Toca lá para o Memorial da cultura.
- Pelo comprimento dos cabelos e da barba, indo para o Memorial da Cultura, o Senhor deve ser algum artista famoso.
- Sou avô do Raul Seixas...
- Mas Raul nasceu há dez mil anos atrás.
- E eu nasci há vinte, agora para com essa frescura e mete esse pé chulerento no acelerador que eu já estou atrasado.
- Parece que o Senhor amanheceu com humor ácido.
- Acelera logo essa (Plim!) antes que eu te mande tomar (Plim!)
 Captando a mensagem, o taxista fechou a matraca e, passando em sinais vermelhos, em 10 minutinhos desovou Ananias em frente ao seu destino, não cobrando nem a corrida.    

Assim que a recepcionista veio ao seu encontro, um velhinho acabava de completar seu voo espacial estatelando-se na calçada, quase ao seu lado.
- (Plimm!) que (Plimm!) que ( Plimm!) é essa!
- Deve ser alguém que cometeu suicídio por não ter todos os documentos em dia e teve seu salário suspenso. Só hoje, o rabecão já recolheu uns três. A propósito, seu Ananias, sua sala de entrevista é a dez, no sétimo andar e sua senha é a 103, portanto é melhor o Senhor se apressar pois pelo andar da carruagem, já deve estar no número 69 e se quando chegar lá, seu número tiver sido chamado, ficará na repescagem até terminarem o total das chamadas. A propósito, seu Ananias, os elevadores não estão funcionando... Ordens do Governador, pois ele disse que os velhinhos aposentados tem que ter alguma atividade física.   

No terceiro andar, Ananias teve que se encostar na parede para dar passagem a uma velhinha que vinha rolando escada abaixo, indo estatelar-se no patamar próximo a ele e, antes de dar o último suspiro, murmurou: - Só porquê faltou a fotocópia do atestado de minha primeira menstruação, os (Plimm!) cortaram meu salário e, sem salário, melhor morrer...     

Fazendo das tripas coração, já com os bofes de fora, Ananias “Boca suja” chegou à porta de sua sala no momento em que chamavam a senha posterior à sua.
-(Plimm!), (Plimm!), Plimm!), agora vou ter que esperar até que chamem todo esse povo aí, (Plimm!).   

Conseguiu um lugar para sentar-se e, de vez em quando, via passar pela janela algum velhinho plainando do andar de cima. No banheiro encontrou uma velhinha pendurada no cano do chuveiro com uma gravata de Tiradentes no pescoço e outra, com a cabeça enfiada no vaso sanitário. (Por mal dos pecados, devido à sua pouca visão, acabara entrando no banheiro das mulheres).   

Procurando manter a calma, Ananias voltou ao seu lugar e, distraindo-se no “zap-zap” de seu celular, sempre de olho na sua preciosa mala, esperou o tempo correr, vendo senhas serem chamadas e de quando em quando, uma maca do Pronto Socorro sair levando algum “piripicado”. Ainda bem que tinha seus documentos em dia, desde o atestado de seu primeiro peido, até o comprovante original do primeiro exame de fezes. Estava, portanto, pronto para o que desse e viesse e lutaria com unhas e dentes para não perder a sua merreca salarial que o Leão e a PREV devoravam, aos poucos, todos os meses do ano (até o 13º).   

Na telinha, finalmente apareceu: “senha 103” e Ananias, catando sua mala de documentos, partiu para a briga.

*O desfecho desta história, você verá na próxima edição.

Obs. No lugar dos “Plins”, você que incorporou na personalidade do Ananias, use os palavrões que quiser. 

Correio de Corumbá

SIGA-NOS NO Correio de Corumbá no Google News

 
 
 

Veja Também

CANTINHO DO BETÃO: O FILHO DO SÉTIMO ATACA OUTRA VEZ

Era noite e o bar de Gilson Cara de Bode estava em polvorosa com mais uma noite de casamento. Orlando Cara de Porco já iniciava os preparativos para a “porca...

CANTINHO DO BETÃO: PARAÍSO

Ele bateu na porta da pequena fazenda pedindo pousada e a fazendeira Doralice, como não podia lhe pagar,  ofereceu alguma refeição em troca de seus serviços....

CANTINHO DO BETÃO: VENDAVAL

O sol já ia se pondo assim que Alípio saiu à varanda do rancho e sentou-se na cadeira de balanço. Trazia um copinho de pinga para acalmar os nervos que já es...

CANTINHO DO BETÃO: DIVAGAÇÕES

Nesta quinta-feira estou por conta. Não havia fisioterapia, pude dormir até bem mais tarde, só levantando lá pelas duas da tarde, para começar minha faina. C...

Últimas Notícias